O texto abaixo foi publicado originalmente na revista Física na Escola, em 2019.
As coisas caem por causa de uma força chamada “gravidade”. Uma colisão na qual a energia cinética se conserva é dita “elástica”. Reações “exotérmicas” liberam energia.
Afirmações como essas não dizem absolutamente nada sobre a natureza. São apenas definições, não passam de jargão, termos técnicos utilizados para facilitar a comunicação. Saber uma definição não é o mesmo que entender um fenômeno. No contexto escolar, dar ênfase às definições em detrimento do entendimento conceitual constitui a famosa “decoreba”.
Que o ensino brasileiro seja baseado na decoreba já é mais do que sabido. Até o Prêmio Nobel de física Richard Feynman observou esse fato. Esse estado de coisas é universalmente deplorado, todos se insurgem contra a decoreba, todos a abominam, ninguém levanta um fio de voz em sua defesa. Mas ela persiste.
Não sendo estudioso do processo de aprendizagem, quero apenas chamar atenção para a relação profunda que os seres humanos possuem com os nomes das coisas e com a possibilidade de nomeá-las. Acredito que essa relação, provavelmente enraizada em profundezas psicológicas, explique em parte a resiliência da decoreba e a dificuldade que todos sentem em lidar com ela.
Por exemplo, no Livro do Gênesis lemos que Deus criou o mundo por
meio do verbo, que é um processo de nomeação: “E Deus chamou à luz Dia; e
às trevas chamou Noite (...) E chamou Deus à porção seca Terra; e ao ajunta-
mento das águas chamou Mares; e viu Deus que era bom.”
Mais adiante, Adão, o primeiro homem, se relaciona com o mundo através de um processo de nomeação: “Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todo o animal do campo, e toda a ave dos céus, os trouxe a Adão, para este ver como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome. E Adão pôs os
nomes a todo o gado, e às aves dos céus, e a todo o animal do campo”.
Ao chamar o gado de gado e a ave de ave, Adão se aproxima deles, torna-os um pouco menos estranhos, um pouco menos alheios a ele mesmo. E, de certa forma, exerce sobre eles um pequeno poder. Afinal, a vaca e o pássaro não falam. Não podem decidir como Adão será chamado. É somente ele que escolhe como chamar às outras criaturas. É ele quem decide os nomes dos demais e, ao fazê-lo, impõe sobre eles
certa medida de controle.
Ao afirmar, em Romeu e Julieta, que “uma rosa com outro nome teria igual perfume”, William Shakespeare relativizou a importância dos nomes. Está correto, objetivamente falando, mas subestima os fatores psicológicos associados ao tema. Por outro lado, o célebre verso de Gertrude Stein, “uma rosa é uma rosa é uma rosa”, reafirma a irredutibilidade da identidade, simbolizada sobretudo no nome.
Conta-se que parte importante de rituais de exorcismo é conseguir que um demônio revele seu verdadeiro nome porque, ao fazê-lo, ele perde força. O que era nebuloso, misterioso e perigoso acaba se revelando, se tornando claro, passível de compreensão e de controle. Em notável contraste, na religião judaica o nome de Deus jamais é
pronunciado.
O ato de nomeação é um ato de revelação e de dominação. Quando dizemos que a razão por trás da queda dos corpos é a força da gravidade, estamos tentando colocar esse fenômeno sob nosso domínio (quando falamos em curvatura do espaço-tempo, ampliamos esse domínio). De fato, matemáticos profissionais valorizam muito as definições, ao ponto de na matemática se considerar que “uma boa definição vale
mais que mil demonstrações”.
Ao darmos nomes ao conceitos, nos apropriamos deles e os revelamos. Delimitar uma questão, circunscrever um problema, isolar sua verdadeira natureza, é meio caminho para entendê-lo. Por isso sugiro que o conhecido fetiche da definição, a reconhecida dificuldade em erradicar a decoreba, não são coisas superficiais e de solução fácil, pois têm ressonâncias ancestrais e afligem não só estudantes mas também, e talvez
principalmente, os próprios professores
No judaísmo antigo, o Nome de Deus era pronunciado uma vez por ano, no "Dia da Expiação", pelo Sumo Sacerdote. Entendia-se que, neste dia, toda a criação era renovada.
Essa questão do "nome" é intrigante. Que tipo de poder é esse, o de nomear? Sem querer entrar nos modismos atuais, há um trecho de uma palestra do Jordan Peterson em que ele chama a atenção para o "Poder de Nomear". É de se pensar longamente sobre o assunto.
Achei um trecho - https://www.youtube.com/shorts/qemxawHH_-I
Acredito que, sem nomear as coisas, como pode o homem entrar em uma relação mais complexa com elas? É claro que a dor que você sente quando uma árvore cai na sua cabeça não depende de você saber que se trata de uma "árvore". Mas entendo que o "Poder de Nomear" se relaciona com as ações essencialmente humanas, ou seja, aquelas derivadas da capacidade humana de pensar. Trata-se de conhecer as coisas e manipulá-las com nosso instrumento mais poderoso: o pensamento. E, se a reflexão é a principal característica humana que nos diferencia de todo o resto do mundo que chamamos natural, o "Poder de Nomear" é de extrema importância para nossa realização.
Diante dessa abordagem, os batismos, as invocações, os títulos, até o uso corriqueiro da linguagem, independentemente de qualquer qualificativo "mágico" que lhes seja dado, seja ele real ou não, parecem ter uma importância renovada, "sobrenatural".
A conclusão que tiro é conhecida, mas não menos séria: é preciso ter muito cuidado com as palavras.
Decorar uma informação e continuar tentando entender o que se passa ali é construtivo para o desenvolvimento intelectual. Claro que decorar uma capítulo inteiro de um livro, da forma como o autor escreveu, não é produtivo e gasta muito tempo.