José Monir Nasser era um crítico literário interessante. Dá para achar textos e palestras dele pela internet, vale a pena procurar.
Acho que ele não se incomodaria de eu divulgar aqui uma delas, levemente editada.
Há um anel maligno que está perdido. Este anel é encontrado e começa a criar poder, fazendo-se notar pelas forças malignas. Essas forças malignas chamam Sauron, que estava enfraquecido. Sauron então começa a procurar o anel para adquirir poder total e controlar todos naquele mundo chamado Terra do Meio, ou Terra-Média – se quiserem chamar assim. Este Sauron só pode ser combatido se não tiver o anel, mas o anel não pode ser transformado numa arma contra Sauron – ele tem que ser destruído. Essa tarefa então é entregue a um pequeno hobbit, comparativamente o menor e mais fraco de todos os indivíduos daquela comunidade. Esse hobbit, apesar de não ter nada com isso diretamente, aceita a tarefa, e se associa com um grupo de outros heróis, digamos assim, que vão fazer um empreendimento quase suicida de jogar o anel nas fornalhas, na Montanha da Perdição, para que o anel deixe de existir e Sauron possa, então, morrer. Depois de muitas e muitas peripécias, isso acontece, e com a morte de Sauron, volta o rei Aragorn, que assume o trono e se casa com uma elfa chamada Arwen. Então, a normalidade retorna à Terra do Meio. É isso. É ou não é?
Qual é o sentido dessa história? Já sabemos que não é uma alegoria, porque o próprio Tolkien nos proibiu de achar que Sauron é Hitler, que os hobbits são os ingleses, etc. Isso não se pode dizer. Não é uma alegoria.
A única possibilidade de compreender O Senhor dos Anéis é por uma interpretação simbólica. E o símbolo fundamental que está aí em questão, o símbolo fundamental é o anel. Ora, o que o anel representa, em última análise? Por que o anel tem de ser destruído de qualquer jeito? A história não é entre o bem e o mal. A interpretação mais comum é achar que essa é a velha e incansável luta entre o bem e o mal, mas não é; podemos ir um pouco mais a fundo, somos capazes de olhar para isso com um pouco mais de profundidade, e entender de verdade a obra.
Por que o anel tem de ser destruído? Para poder responder isso, temos que responder à seguinte pergunta: o que ele simboliza? O que o anel é? Pensem. Uma das características do símbolo é que enquanto os sinais, em princípio, não precisam ter nenhuma analogia, os símbolos necessariamente têm em si algum processo de analogia, tem alguma coisa neles que fala, que entrega aquilo que eles simbolizam. O que o anel tem, basicamente? É só descrever o que o anel é: um círculo perfeito... mas tem outra característica. Qual é?
O que está na cara do anel, está no próprio anel, que não podemos deixar de perceber? Ele é circular, perfeito, e... pequeno. O anel não é pequeno? Ele tem que caber no dedo. O anel é circular, perfeito e pequeno. Pois o que tem que ser destruído é isso: aquilo que é circular, perfeito e pequeno. Ora, o que é isso, em última análise? Por que Tolkien se deu ao trabalho de levar uma vida inteira estudando isso, para fazer esse livro? Ele não queria fazer um livro de aventuras – muito embora seja bom como livro de aventuras, não é esse o sentido pelo qual um autor eruditíssimo como Tolkien, um homem que passou a vida inteira estudando coisas difíceis, foi fazer um livro desse. Toda a essência, toda a trama, todo o coração da obra está na destruição do anel. Ora, o que é o anel?
Para entendermos o que é o anel, poderíamos pensar em olhar para esse assunto com outro olhar. Há duas maneiras básicas de olharmos para a vida e para o mundo que está em volta de nós. A primeira maneira é achar que esse mundo é cheio de mistérios, e a outra maneira é achar que esse mundo é cheio de certezas. Há uma tensão fundamental na nossa vida, que é o fato de que vivemos num mundo misterioso, e, no entanto só conseguimos viver na medida em que encontramos certezas. O que se chama de ciência? Não é um processo de se obter alguma certeza sobre alguma coisa? Todo o processo do conhecimento humano é um processo de perseguir certezas, de alguma maneira, de um jeito ou de outro.
Há aí, nesse caso, uma contradição extraordinária entre essas duas coisas; essa tensão natural entre os mistérios do mundo e as certezas que temos sobre o mundo não pode, em última análise, ser resolvida, porque assim é a vida humana. A vida humana é essa miséria entre todo o mistério que nos cerca, do qual não sabemos quase nada, e a necessidade de passarmos a vida encontrando algum pedaço de tábua para nos segurarmos nesse turbilhão extraordinário. Vocês compreendem que isso é uma coisa tensional e, portanto, insolúvel? Tudo aquilo que é tensional não é solúvel. O que é uma tensão? É uma situação em que há um impacto, uma pressão mútua, permanente, para a qual não é possível haver solução nenhuma. Toda a vida humana é tensional. Como é que sabemos que encontramos um grande livro? Todo grande livro, toda grande obra de arte, toda grande ópera, toda grande pintura, toda grande obra humana, de natureza artística, tem um fundo tensional, porque aí você sabe que o sujeito atingiu de verdade as profundidades essenciais da vida.
Pois a ideia de que o anel é a solução para o mundo – todo mundo quer pegar o anel – é uma tentativa de resolver o problema. Mas essa tentativa não funciona, porque você transformar o mundo, você utilizar o anel como símbolo da solução para o mundo do poder é criar uma solução perfeita, mas pequeníssima; é fechar o sistema, e não abri-lo. Portanto, no fundo, no fundo, o quê se contrapõe ao anel não é o não-anel, mas a cruz. No sentido simbólico, a cruz é uma forma geométrica que tem possibilidades para todos os lados. O anel e a cruz estão em oposição, porque o anel é um sistema em que não há nenhuma possibilidade de sair daquela circularidade, que é fechada, e a cruz, ao contrário, tem possibilidades todas para todos os lados. O anel corresponde à aceitação da explicação lógica como sendo a única possível, enquanto a cruz corresponde à possibilidade de conviver com o mistério. O anel corresponde ao fechamento e à exaustão das possibilidades do sistema, porque o sistema reproduz-se nele próprio. Quanto mais aberto, maiores as possibilidades e as multiplicidades de escolha; quanto mais fechado, mais unificada está uma ideia, porém, pequena.
O que o anel representa é a atitude humana de tentar enfiar o mundo na cabeça. Ou seja, você pega uma teoria qualquer para a explicação do mundo – seja qual for ela, marxista, freudiana, qualquer que seja – e tenta explicar o resto do mundo inteiro em torno dela, nos padrões dessa teoria. Pois o que acontece depois que você destrói o anel é que finalmente, não tendo mais que colocar o mundo dentro da cabeça, você pode, finalmente, colocar a cabeça no mundo. A existência do anel é a impossibilidade do conhecimento humano verdadeiro, porque ele é uma espécie de prisão de uma ideia única, é o aprisionamento do homem numa proposição fechada, como se tivéssemos a possibilidade de explicar os mistérios do mundo numa fórmula qualquer. É isso que tem de ser destruído a qualquer preço, porque, se não destruirmos isso, a Terra-Média não tem futuro. A humanidade não tem futuro.
A manutenção do anel é a manutenção da circularidade do pensamento, que pode parecer perfeito, porque a nossa razão é que faz com que as coisas sejam perfeitas. O anel é o predomínio da racionalidade no mundo, e a destruição do anel é o predomínio da imaginação. Não existe possibilidade de vida humana fora da imaginação; dentro da racionalidade estamos todos perdidos e condenados a repetirmos como papagaios um determinado anelzinho que foi estabelecido como sendo a ideia dominante que nos cerca.
O que O Senhor dos Anéis está propondo é destruir essa redução da vida humana a um pequeno conjunto de explicações que os seres humanos fazem a partir da sua própria percepção deles mesmos, ou seja, sem a possibilidade de permeação dessas coisas para fora, para com o mundo fora de nós. Na verdade, o que a gente nunca deve esquecer é que tudo flutua num mar de mistérios, e toda a vez que você tenta produzir um anel, você transforma esses mistérios em arremedos de explicação para caber na sua pequena teoriazinha marxista, freudiana, etc. – que é só o que o mundo fez no século XX. O século XX passou o tempo todo criando teorias reducionistas nas quais você enfia o mundo. Então o marxismo explica o amor entre os casais, explica o amor entre pais e filhos, explica a religião... Explica-se qualquer coisa pelo critério marxista – é só você pegar o autor certo. O freudismo explicará todas as relações humanas, todas as relações econômicas, todas as relações sociais por meio de explicações freudianas, ligadas à repressão dos sentimentos, enfim, ligadas aos desejos.
Pois são essas as “anelizações” do mundo que O Senhor dos Anéis está nos dizendo que têm que ser jogadas na fogueira da Montanha da Perdição, pois não há modo de vivermos dentro dessas possibilidades, não há modo de vivermos assim de modo saudável. Isso simplesmente não é possível, a humanidade não funciona assim. É mais ou menos como diz Chesterton: a única proposição de vida que funciona é aquela em que você tem em relação ao mundo uma sensação de espanto associada a uma sensação de acolhimento. E Chesterton acha que essa é a essência do cristianismo, aliás.
A única vida que funciona, que vai dar certo, em última análise, é uma vida que, ao mesmo tempo em que se tem espanto com relação a tudo que está em volta, se tem uma sensação de acolhimento nesse mundo de coisas espantosas, nesse mundo de mistérios – é a única vida humana possível, em última análise. Toda vez que você abdica de considerar o mistério, de considerar o mágico, o místico – quer dizer, toda a vez que você acha que os milagres podem ser explicados pelas leis da física, você joga fora a possibilidade de compreender o mundo. Não há vida filosófica possível dentro de uma perspectiva de que tudo pode ser explicado. A primeira condição para você poder ter vida filosófica é partir da ideia de que tudo flutua num mar de mistérios – não é possível pensar o mundo a não ser assim.
Por que se chama Terra do Meio? Porque o homem vive entre a Terra do Inferno e a Terra do Céu. A natureza humana está sempre entre um firmamento de luz e um abismo de trevas. É por isso que essa Middle Earth na verdade é Terra do Meio, e não Terra Média. Terra Média dá outra sensação, dá outra impressão. Terra do Meio é muito melhor, porque dá a ideia simbólica de que o ser humano vive com a possibilidade do inferno e do céu. O inferno é você aprisionar-se no próprio anel. É isso que é o inferno, você se transforma na própria redundância. Então, a gente tem que escolher entre isso e a possibilidade de abrir o sistema para botar a cara no mundo. Não vamos ter domínio do mundo colocando-o na nossa cabeça; isso é uma pretensão extraordinária. Temos que fazer o contrário: colocar a nossa cabeça no mundo, e não o mundo na cabeça. É esse o sentido da obra; é por isso O Senhor dos Anéis é uma das mais notáveis obras que foram escritas.
A vida humana não funciona forjando-se anéis para que nós reduzamos o mundo a eles, porque embora eles pareçam perfeitos – eles podem ter até uma circularidade perfeita, mas eles são pequenos. Uma perfeição de circularidade não implica que eles possam explicar alguma coisa.
O que Tolkien faz é uma mitologia que nos ajuda a entender, simbolicamente, que não é possível construir o século XX de novo como nós construímos. Estamos continuando a construir, não é? Vamos dar com os burros n’água, mas paciência. O que ele fez foi uma tentativa de demonstrar que não é possível governar... embora... que coisa mais poderosa e atrativa não é alguém ter o domínio do anel, para que todo mundo curve-se à sua autoridade! Que maravilha não seria, para o ser humano, dominar todas as possibilidades da vida nas suas próprias mãos – essa é a razão pela qual todo o mundo resiste em entregar o anel. Até mesmo Frodo, no último minuto, resolve não jogar. Depois de ter quase se matado para chegar lá.
Mas o anel não pode existir. Não é que ele tenha que estar nas mãos do bem. Vejam, Saruman diz assim, num dado momento: “Vamos usar o anel para o bem.” Mudaríamos o método, mas no fundo os nossos objetivos seriam os mesmos. De vez em quando aparece alguém com a ideia de usar o anel para o bem, mas ele não pode ser usado para o bem porque é essencialmente mau – é uma redução ilegítima das possibilidades humanas.
Que intelectual não gostaria que o mundo funcionasse a partir do seu modelo? Veja o quanto Marx deve ser um fantasma feliz no inferno: quantos milhões de pessoas não foram mortas para poder implantar a teoriazinha dele sobre sociedade? Imagine isso para um intelectual, que é o sujeito sem poder nenhum – porque a primeira casta, a casta intelectual, não tem poder, só autoridade moral; o poder militar está com a segunda casta, o poder militar é Aragorn. Gandalf é da primeira casta, ele é o poder espiritual. Ora, o poder espiritual vive o tempo todo precariamente, porque o que você é quando é poder espiritual, quando você é um brâmane? Você só tem autoridade moral; não pode mandar ninguém lhe obedecer.
Há uma mania, hoje em dia – essas coisas de administração de empresas – de dizer que “conhecimento é poder”. Conhecimento não é poder coisa nenhuma – só se você tiver o conhecimento dos números da loto - mas isso não é conhecimento coisa nenhuma, é apenas uma informação. Ora, o contrário: de modo geral, quem sabe alguma coisa não tem poder nenhum, o sujeito que aprendeu alguma coisa é justamente quem não tem poder nenhum. Para alguém que está nessa situação de baixo poder, que coisa maravilhosa não seria controlar o mundo com seu ideário, com seu modelo – esse é o anel que Gandalf não quer botar no dedo dele, porque sabe que a vaidade é poderosíssima. E quem vai dizer que dá para resistir à tentação de mandar estabelecer imperialmente como as coisas são, você que teria desenhado o anel que todos querem ter, porque aquele anel representa o poder – o poder das ideias aparentemente perfeitas, e pequenas?
A mente é capaz de fazer coisas magníficas. Ratio significa razão; razão significa comparação. A nossa mente é capaz de dividir, separar, juntar, comparar, então a nossa mente tem poderes incríveis, por exemplo, de descobrir que há uma contradição entre os pedaços, ou seja, que um determinado conjunto de ideias está torto. A nossa mente é capaz de resolver tudo isso, mas é incapaz de perceber o que é verdade e o que é mentira. Porque a nossa mente é capaz de produzir os esquemas mais sofisticados, com toda a aparência de verdade, mas ser completamente mentira. A nossa mente não sabe fazer a permeação de “verdade e mentira” porque é horizontal, e quem diz para você se é verdade ou mentira não é a mente, é aquilo que os antigos chamavam de intelecto. Intelecto é uma situação vertical; intelecto é aquilo que nós, de modo geral, reputamos ser nossa intuição. A gente acha que determinada coisa é assim, ou determinada coisa é assado; a gente sente que é assim ou assado.
A nossa intuição, muitas e muitas vezes, é muito mais útil do que o nosso raciocínio, porque nosso raciocínio é capaz de produzir todo tipo de autoengano que você possa imaginar. A maior parte das pessoas que fazem besteiras homéricas o fazem depois de ter construído uma justificativa racional enorme para isso. Por quê? Porque não ouviram a intuição, e se basearam na razão. Pois a razão é a origem e a causa central daquilo que chamaríamos de loucura. Você imaginar que todas as relações humanas podem ser definidas pelo dinheiro, como fazem os marxistas, é simplesmente criar uma teoria louca. Ora, quando isso se torna finalmente o principal instrumento de raciocínio sobre o mundo, então Sauron pegou o anel!
Quando a gente transforma essas coisas num instrumento de compreensão da vida, essas pequenas, minúsculas circularidades perfeitas, que são os anéis, nós destruímos o mistério da vida. Se você destruir o mistério da vida, você se torna absolutamente incapaz de produzir qualquer espécie de conhecimento, de viver nesse mundo. Pois o que fazemos hoje em dia é criar um mundo cheio de aneizinhos: o anelzinho ambientalista, o anelzinho marxista, o anelzinho freudiano, todos esses pequenos aneizinhos são aquilo que controla a nossa vida. O único jeito é destruir isso tudo, como Frodo fez.
É preciso desembarcar de uma vez da pretensão de construir uma vida humana com base na racionalidade. Você não vai conseguir. Você só consegue fazer bem quando você constrói uma vida humana com base na imaginação, e não na racionalidade. O único jeito de a vida humana dar certo é com base na imaginação.
E para você conseguir ter imaginação, tem que se comportar como criança, que é capaz de perceber mundos que são invisíveis. Por isso é que Jesus diz: “Venham a mim as criancinhas.” Ele está dizendo que o comportamento humano humilde é o comportamento que vai para o céu, é o comportamento de alguém que diz assim: “Olha, eu não entendo quase nada disso. Não vou criar aqui a tirania da minha pequena ideia; vou tentar pegar uns pedacinhos, o que eu puder, e dizer: ‘Eu humildemente consegui aqui essas moedinhas no meu cofrinho’”. O conhecimento humano é uma espécie de cofrinho em que você põe umas moedas. Então o problema da vida humana é que você não vai para o céu – aí olhando simbolicamente para o cristianismo – se não tiver um comportamento de criança, capaz de acreditar em elfos, quer dizer, não em elfos especificamente, mas na ideia de que tudo flutua num mar de mistérios.
Dentro desse mar de mistérios temos que ter alguma certeza pra viver. Pois essa contradição que há entre essas duas coisas é uma das tensões fundamentais que presidem a estruturação da condição humana. Ora, como é que eu destruo essa tensão? Não consigo destruir. Essa tensão é indestrutível. Mas como é que eu faço? Tento transformar tudo em racionalidade, tento criar os aneizinhos redondos, pequenininhos e perfeitos – e eles são perfeitos, o anel parece uma coisa perfeita, ele é infinitamente redondo; no entanto, ele é minúsculo, não tem poder explicativo nenhum. Pois é essa atitude do homem do século XX que Tolkien está querendo modificar, explicando isso simbolicamente pela história da demanda do anel, da sociedade do anel.