A publicação de ontem trouxe um capítulo do meu primeiro livro de ficção, Os Automóveis Ardem em Chamas, que se passa em 1968 e mostra o personagem Mauro decidindo entrar para a luta armada.
Hoje trago outro capítulo. Este se passa em 2019 e mostra Paulo, o filho de Mauro, que está tentando entender o que aconteceu com seu pai. Ele está acompanhado do detetive de polícia Alex, que, de certa forma, meio a contragosto, o está ajudando nessa investigação.
Paulo acha melhor telefonar para Alex e confirmar o encontro. Marcaram de conversar com Éder, sobrinho de Juvenal, mas o tom de voz empregado pelo policial não transmitia muita confiança. Bom dia, Alex, diz ele, se esforçando para produzir um tom de cumplicidade. Já estou saindo, te passei o local, você viu? Te encontro lá, então? A resposta continua tão isenta de entusiasmo quanto no dia anterior.
— Olha, ô Paulo, não me leve a mal não, mas eu estou meio ocupado, não tenho tempo de ouvir vocês conversando sobre seus papais e suas mamães e o que eles fizeram cinquenta anos atrás. O meu trabalho é investigar os crimes que estão acontecendo hoje em dia, entende? Toda hora morre gente, cara. Investigação de mortes ocorridas antes de eu nascer é jornalismo, não é coisa de polícia.
— Detetive Alexandre, estou afirmando para você que o assassinato de Onofre Barbacena está ligado a essa história. Pode confiar. Ou você já se esqueceu que deram um tiro na janela da coitada da dona Eulália? Aquele tiro por acaso foi disparado cinquenta anos atrás? E outra coisa. Eu tenho certeza de que estava sendo seguido, ontem à noite.
Alex não põe muita fé na afirmação. Sabe que é muito fácil um sujeito achar que está sendo seguido quando na verdade não está. Basta que ele tenha visto mais filmes de espionagem do que é saudável, que um tiro tenha sido recentemente disparado a menos de dez metros de distância dele e que um carro qualquer fique na sua cola por mais de cinco minutos. Esse cara está obcecado a vida dos pais, dois idiotas que tentaram assaltar um banco e se foderam, e está ficando é pirado, baste notar as olheiras fundas, agora começou a ver coisas.
— Era uma moto, andou atrás de mim o caminho todo da casa do meu primo até o meu prédio. Não estava andando logo atrás, manteve uma certa distância. Mas estava lá, tenho certeza. Absoluta. O motorista usava um capacete totalmente preto, não deu para ver o rosto dele. Mas era homem.
Alex hesita, pode ser que seja verdade. Paulo aproveita para insistir.
— Estou te dizendo, esta investigação está chegando a algum lugar. E tem gente preocupada com isso. Vou te falar uma coisa. Metade do dinheiro roubado naquele assalto nunca foi recuperada. Uma bolada. Que talvez tenha ficado com Juvenal, nunca mais visto. E que talvez tenha passado para as mãos de quem o matou. Venha comigo falar com o sobrinho dele, Alex. Eu só vou se você for.
O policial acaba se rendendo. Os dois marcam um local para se encontrarem dentro do shopping e de lá seguem para a loja de Éder Ferreira. Alex pergunta se ele foi seguido novamente. Prestei bastante atenção, mas desta vez não percebi ninguém, diz Paulo. É difícil saber com certeza, no trânsito sempre há motos por todo lado. E agora tem esses de aplicativos, com essas mochilonas. Talvez o cara tenha ficado com medo de dar muito na vista. Mas tenho certeza de que isso é um sinal de que estamos fazendo progresso.
O telefone de Alex toca enquanto eles estão caminhando. Uma voz de mulher se identifica como secretária da escola onde sua filha Bruna estuda. Quer que ele compareça à secretaria assim que for possível. Mas é sobre o quê? Uma ocorrência envolvendo sua filha. Ocorrência, como assim? Seria melhor se pudessem conversar pessoalmente, se for possível. Tudo bem, moça, pode deixar. Eu passo aí, ok? Puta saco, diz ele, colocando o telefone no bolso. Aconteceu alguma coisa, pergunta Paulo. Minha filha só me dá problema, vou te contar.
As paredes da loja são cobertas por grandes garrafões plásticos com rótulos que falam em “Whey”. É top whey, basic whey, super whey, strong whey, 80% whey, whey concentrado, whey gold. Aqui e ali, fotos de homens extremamente musculosos, com uma pele que parece de plástico e sob a qual correm veias grossas. A maioria está segurando pesos e tem um ar de concentração que lembra a escultura do pensador, de Rodin.
É o próprio Éder quem os atende, apoiado no balcão. Ele próprio é um sujeito forte. Nem tanto quanto os modelos nas fotos, os músculos não são tão protuberantes, a pele não é tão brilhante nem tão esticada. Lembra o incrível Hulk da televisão, que Paulo assistia quando era criança. Os olhos ficando verdes, você não quer me deixar nervoso.
Paulo explica a história para Éder, diz que seus pais eram amigos do tio dele, que todos participaram de um assalto a banco juntos, que Mauro e Carla foram presos, que Juvenal desapareceu. Acha melhor não mencionar Onofre.
— Olha, meu pai me contou meio por alto sobre essa história. Pouca coisa. Não tenho curiosidade em saber mais. Nem conheci meu tio Juvenal, só por foto. Dizem que era um cara legal, tocava violão e tudo mais.
— Ele não contactou a família depois de desaparecer?
— Que eu saiba, não.
— Não deixou nenhuma mensagem? Nenhum dinheiro?
Éder se interessa pela palavra dinheiro. Que história é essa de dinheiro, que dinheiro. Pode ser que parte do dinheiro do assalto tenha ficado com ele, diz Paulo. Afinal, ninguém sabe o que aconteceu.
— Olha, que eu saiba não deixou dinheiro nenhum. Eu, por mim, nem sei se aceitaria uma grana que foi fruto de assalto. Gosto de andar pelo certo. Esse meu tio só causou desgosto para a nossa família.
— Ele estava tentando enfrentar a ditadura, caralho. Foi um cara corajoso.
Éder dá a volta no balcão e caminha até uma das prateleiras, onde alinha com cuidado os rótulos dos produtos.
— Parceiro, em primeiro lugar, não fala palavrão na minha loja. Segundo, essa conversa aí, comigo não cola. Falam muito mal daquele período, regime militar e tal, mas não sei se foi tudo isso. Quem estava trabalhando não viu problema nenhum, pelo menos é isso que o meu avô dizia. Na nossa família foi só esse meu tio que teve problema, o resto era gente séria. Se cada um que não gostar do governo se sentir no direito de assaltar um banco, já pensou como é que fica?
Quando termina a organização de um setor, ele passa para outro. Concentrado, já parece ter se esquecido da presença dos outros dois. Afinal, olha para eles, parece surpreso e um pouco incomodado por ainda estarem ali. Então é isso, ele diz, não sei nada sobre esse meu tio nem quero saber. Mais alguma coisa?
Não há mais nada, então Paulo e Alex agradecem o tempo dele e vão embora. Sentam-se para um café. Mexendo a bebida na xícara, Paulo esclarece que não quis alongar a conversa para não se irritar. Alex olha distraído para o menu plastificado, mas logo o deixa cair sobre a mesa, não vai pedir mais nada. Não gostou das opiniões do cara? Não achei nada demais.
— Não me diga que você também acha que a ditadura foi uma época boa?
— Se foi boa, eu não sei. Mas também não foi tão ruim assim. E nem adianta fazer essa cara. Vai me dizer que os militares torturaram algumas pessoas, é isso? Tortura existe até hoje, Paulo. Nem queira saber o que rola nos presídios brasileiros, nas delegacias. Eu mesmo já vi cada coisa. Lá na minha DP a gente tinha uma tira de borracha que só usava para bater na sola do pé de vagabundo. Ficava pendurada atrás da porta. Pensa comigo. Você precisa da informação, o cara não quer falar, vai fazer o quê? Pedir por favor? Vai explicar pra ele que o crime não compensa, que ele precisa se endireitar, por a mão na consciência?
— O povo precisa confiar em quem está no governo, Alex. Sabia que mais de oitenta por cento das prisões realizadas na época da ditadura não eram nem comunicadas ao judiciário? Que quase duas mil pessoas declararam em juízo terem sido torturadas na prisão? Sabia que em mais de cem casos as forças da repressão sumiram com o cadáver das pessoas que mataram?
— Grande coisa! Sabe quantos morrem assassinados no Brasil todo ano, hoje em dia? Se a vida valia pouco naquela época, atualmente vale menos ainda. Desculpe, Paulo, mas essa preocupação toda com a ditadura é coisa de classe média. É assunto de quem tem tempo pra isso. Essa conversinha de esquerda e direita. Bobagem. Eu vejo cada um por aí dizendo “eu sou de esquerda” e bate até no peito, orgulhoso. E daí, amigo, que você é de esquerda? Bela bosta. Enfia no cu. Gente pobre está muito ocupada ganhando a vida pra ligar pra isso. E pobre de verdade conhece a violência não é de ouvir histórias a respeito dos pais, e nem é por causa de leituras de escola, é na pele mesmo.
Alex percebe que está soando como Bruna, aquele discurso sobre a vida difícil da periferia é dela e ele não se sente à vontade ao repeti-lo. Mas não tem escolha, não vai ficar calado ouvindo conversa de fotógrafo barrigudinho sobre o único assunto que domina. Polícia contra bandido, lei e ordem, violência e crime, disso ele entende. Não é um branco criado no sucrilhos que vai querer pagar de sabido com ele.
— E digo mais, vocês só se incomodam tanto com a ditadura porque, naquele tempo, branco rico universitário não estava a salvo. Foi a única época em que gente como você apanhou da polícia, foi esculachado, preso sem motivo, desapareceu. É por isso que se fala no assunto até hoje. Se todas as vítimas tivessem sido pretas e pobres, era vida que segue, normal.
Paulo não está disposto a discutir. Policial é tudo bicho bronco, não adianta. Abre os braços em sinal de rendição.
— Não vamos brigar por causa disso, Alex. Deixa pra lá. Nós não estamos investigando a ditadura, certo? Eu estou interessado na história do meu pai e você quer saber quem matou Onofre Barbacena. Não é isso? Então, acho que só resta uma pessoa com quem nós dois precisamos conversar.
Lembro de quando era criança, entre os governos de Geisel e Figueiredo, minha Mãe sempre falava em casa para não xingar o presidente para não sermos presos. Meu Pai era metalúrgico e de vez em quando trabalhava no turno da noite. Quando voltava para casa muitas vezes sofria revista de soldados do exército em blitz nos trens da velha FEPASA. Claro que, fora estas blitz ou o medo que minha Mãe tinha, no mais não tenho muito a dizer do período, até mesmo porque eu era uma criança e a fase final com o Figueiredo já era de abertura política. Portanto posso afirmar que não sei o que é viver sob o manto de uma ditadura. Contudo tenho uma opinião (de cidadão apenas, não técnica) a respeito de ditaduras: Não deveriam existir mas existem pois nós -sapiens? - gostamos de mandar em outras pessoas. Gostamos de poder e por este poder continuamos a fazer o que não deveríamos. Sobre seu livro, como disse ontem, já encomendei. Tenho certeza que será uma agradável leitura. Obrigado!