No começo do século XXI, o famoso matemático inglês Sir Michael Atiyah, ganhador da medalha Fields, deu uma palestra sobre a matemática do século XX.
Abaixo, um trecho bastante acessível e interessante dessa palestra.
Quero falar sobre uma dicotomia matemática que tem estado conosco o tempo todo, oscilando pra lá e pra cá, que me dá a oportunidade de fazer algumas especulações ou observações filosóficas. Refiro-me à dicotomia entre geometria e álgebra.
Geometria e álgebra são os dois pilares formais da matemática; ambas são muito antigas. A geometria remonta aos gregos e até antes; a álgebra remonta aos árabes, persas e hindus. Ambas foram fundamentais para a matemática, mas tiveram uma relação difícil.
Deixe-me começar com a história do assunto. A geometria euclidiana é o principal exemplo de uma teoria matemática, e era firmemente geométrica até a introdução, por Descartes, das coordenadas algébricas, no que hoje chamamos de plano cartesiano. Foi uma tentativa de reduzir o pensamento geométrico à manipulação algébrica, um grande avanço ou um grande ataque à geometria por parte dos algebristas.
Se compararmos o trabalho de Newton e Leibniz, eles pertencem a tradições diferentes: Newton era fundamentalmente um geômetra, Leibniz era fundamentalmente um algebrista; e havia razões boas e profundas para isso. Para Newton, a geometria, ou o cálculo como ele o desenvolveu, era a tentativa matemática de descrever as leis da natureza. Ele estava preocupado com a física em um sentido amplo, e a física ocorria no mundo da geometria. Se quiséssemos compreender como as coisas funcionavam, pensávamos em termos do mundo físico, pensávamos em termos de imagens geométricas. Quando desenvolveu o cálculo, ele quis desenvolver algo que fosse o mais próximo possível do contexto físico. Ele, portanto, usou argumentos geométricos.
Leibniz, por outro lado, tinha o objetivo ambicioso de formalizar toda a matemática, transformando-a numa grande máquina algébrica. Era totalmente oposto à abordagem newtoniana e havia notações muito diferentes. Como sabemos, na grande controvérsia entre Newton e Leibniz, a notação de Leibniz venceu. Seguimos sua maneira de escrever derivadas parciais. O espírito de Newton ainda está lá, mas ficou enterrado por muito tempo.
No final do século XIX, há cem anos, as duas figuras principais eram Poincaré e Hilbert. Eles são, falando de maneira muito grosseira, discípulos de Newton e Leibniz, respectivamente. O pensamento de Poincaré estava mais no espírito da geometria, da topologia, usando essas ideias como um insight fundamental. Hilbert era mais formalista, queria axiomatizar, formalizar e fazer apresentações rigorosas e formais. Pertencem claramente a tradições diferentes, embora qualquer grande matemático não possa ser facilmente categorizado.
Deixe-me tentar explicar minha própria visão da diferença entre geometria e álgebra. A geometria trata, obviamente, do espaço, disso não há dúvida. Se eu olhar para o público nesta sala, posso ver muita coisa em um único segundo ou microssegundo. Posso absorver uma grande quantidade de informações e isso, claro, não é um acidente. Nossos cérebros foram construídos de tal forma que são extremamente dedicados à visão. A visão, segundo ouvi de amigos que trabalham com neurofisiologia, ocupa cerca de 80 ou 90% do córtex cerebral. Existem 17 centros diferentes no cérebro, cada um dos quais é especializado numa parte diferente do processo de visão: algumas partes estão relacionadas com a vertical, algumas partes com a horizontal, algumas partes com a cor ou perspectiva, e algumas partes são dedicadas ao significado e à interpretação.
Compreender e dar sentido ao mundo que vemos é uma parte muito importante da nossa evolução. Portanto, a intuição ou percepção espacial é uma ferramenta extremamente poderosa, e é por isso que a geometria é na verdade uma parte tão poderosa da matemática — não só para coisas que são obviamente geométricas, mas mesmo para coisas que não são. Tentamos colocá-las em forma geométrica porque isso nos permite usar a nossa intuição. Nossa intuição é nossa ferramenta mais poderosa. Isso fica bastante claro quando você tenta explicar uma questão matemática a um aluno ou colega. Vocês têm uma discussão longa e difícil e, finalmente, o aluno entende. O que ele diz? Ele diz: estou vendo!
Ver é sinônimo de compreensão, e usamos a palavra percepção para significar as duas coisas. Pelo menos isso é verdade na língua inglesa. Seria interessante comparar isso com outras línguas. Penso que é fundamental que a mente humana tenha evoluído com esta enorme capacidade de absorver uma vasta quantidade de informação através de ação visual instantânea, e a matemática pega isso e aperfeiçoa.
A álgebra, por outro lado (e talvez você não tenha pensado nisso dessa maneira), preocupa-se essencialmente com o tempo. Qualquer que seja o tipo de álgebra que você esteja fazendo, uma sequência de operações é sempre executada uma após a outra, e uma após a outra significa que o tempo está passando. Num universo estático você não pode imaginar a álgebra, mas a geometria é essencialmente estática. Posso apenas sentar aqui e ver, e mesmo que nada mude, ainda posso ver. A álgebra, no entanto, lida com o tempo, porque há operações que são realizadas sequencialmente e, quando digo álgebra, não me refiro apenas à álgebra moderna. Qualquer algoritmo, qualquer processo de cálculo, é uma sequência de etapas executadas uma após a outra; o computador moderno deixa isso bem claro. O computador moderno pega suas informações em uma sequência de zeros e uns e dá a resposta.
A álgebra se preocupa com a manipulação do tempo e a geometria se preocupa com o espaço. Esses são dois aspectos ortogonais do mundo e representam dois pontos de vista diferentes na matemática. Assim, a discussão ou diálogo entre matemáticos do passado sobre a importância relativa da geometria e da álgebra representa algo muito, muito fundamental.
É claro que não vale a pena pensar nisto como uma discussão em que um lado perde e o outro ganha. Gosto de pensar nisso na forma de uma analogia: “Você deveria ser apenas um algebrista ou um geômetra?” é como dizer “Você prefere ser surdo ou cego?” Se você é cego, não vê o espaço; se é surdo, não ouve, e a audição ocorre no tempo.
Na física, há uma divisão análoga, aproximadamente paralela, entre os conceitos e os experimentos. A física tem duas partes: teoria – conceitos, ideias, palavras, leis – e aparato experimental. Penso que os conceitos são, falado de forma bem geral, geométricos, uma vez que se preocupam com coisas que acontecem no mundo real. Um experimento, por outro lado, é mais parecido com um cálculo algébrico. Você faz algo ao longo do tempo; você mede alguns números; você os insere em fórmulas, mas os conceitos básicos por trás dos experimentos fazem parte da tradição geométrica.
Uma forma de colocar a dicotomia num quadro mais filosófico ou literário é dizer que a álgebra é para o geômetra o que se poderia chamar de oferta fáustica. Como sabemos, Fausto, na história de Goethe, recebeu do diabo tudo o que queria (no caso, o amor de uma bela mulher), em troca da venda de sua alma. Álgebra é a oferta feita pelo diabo ao matemático. O diabo diz: “eu lhe darei esta máquina poderosa, ela responderá a qualquer pergunta que você quiser. Tudo que precisa fazer é me dar sua alma: desista da geometria e você terá esta máquina maravilhosa.” (Hoje em dia podemos pensar no computador!)
É claro que gostamos de ter as duas coisas; provavelmente trairíamos o diabo, fingiríamos que estamos vendendo nossa alma e não a entregaríamos. No entanto, o perigo para a nossa alma existe, porque quando passamos para o cálculo algébrico, essencialmente deixamos de pensar; paramos de pensar geometricamente, paramos de pensar no significado.
Estou sendo um pouco duro com os algebristas aqui, mas fundamentalmente o propósito da álgebra sempre foi produzir uma fórmula que pudesse ser colocada em uma máquina, girar uma manivela e obter a resposta. Pegamos algo que tem um significado; convertemos em uma fórmula e obtemos a resposta. Nesse processo não precisamos mais pensar sobre a que geometria correspondem os diferentes estágios da álgebra. Perdemos os insights e isso pode ser importante em diferentes estágios. Você não deve abandonar o insight! Talvez queira voltar a ele mais tarde. É isso que quero dizer com a oferta fáustica. É uma provocação.
Esta escolha entre geometria e álgebra levou a híbridos que confundem as duas, e a divisão entre álgebra e geometria não é tão simples e ingênua como acabei de dizer. Por exemplo, os algebristas frequentemente usam diagramas. E o que é um diagrama senão uma concessão à intuição geométrica?