Em 2008, o matemático Freeman Dyson, ganhador do prêmio Nobel de física, deu a “palestra Einstein” da American Mathematical Society. O discurso completo está disponível aqui.
Tenho particular apreço por Dyson. Foi um grande matemático que se destacou na física, e ajudou a criar uma área da matemática na qual eu trabalhei um pouco, a teoria das matrizes aleatórias.
Nos trechos abaixo, ele fala sobre matemáticos-pássaros, matemáticos-sapos e Hermann Weyl.
Alguns matemáticos são pássaros, outros são sapos. Os pássaros voam alto e contemplam amplas paisagens matemáticas no horizonte distante. Eles se deleitam com conceitos que unificam o pensamento e reúnem diversos problemas de diferentes partes da paisagem. Os sapos vivem na lama e veem apenas as flores que crescem ali por perto. Eles se deleitam com os detalhes de objetos específicos e resolvem problemas um de cada vez. Eu sou um sapo, mas muitos dos meus melhores amigos são pássaros. O tema principal da minha palestra esta noite é esse. A matemática precisa tanto de pássaros quanto de sapos. A matemática é rica e bela porque os pássaros lhe proporcionam visões amplas e os sapos lhe dão detalhes intrincados. A matemática é ao mesmo tempo uma grande arte e uma ciência importante, porque combina generalidade de conceitos com profundidade de estruturas. É estúpido afirmar que os pássaros são melhores que os sapos porque enxergam mais longe, ou que os sapos são melhores que os pássaros porque enxergam mais fundo. O mundo da matemática é amplo e profundo, e precisamos que pássaros e sapos trabalhem juntos para explorá-lo.
Esta palestra é chamada de “palestra Einstein”, e sou grato à American Mathematical Society por me convidar para homenagear Albert Einstein. Einstein não era um matemático, mas um físico que era ambivalente em relação à matemática. Por um lado, ele tinha um enorme respeito pelo poder da matemática para descrever o funcionamento da natureza e tinha um instinto para a beleza matemática que o levou ao caminho certo para encontrar as leis da natureza. Por outro lado, ele não tinha interesse em matemática pura e não tinha habilidade técnica como matemático. Nos últimos anos, ele contratou assistentes para fazerem cálculos matemáticos para ele. Sua maneira de pensar era mais física do que matemática. Ele era supremo entre os físicos como um pássaro que via mais longe que os outros. Não falarei de Einstein porque não tenho nada de novo a dizer.
No início do século XVII, dois grandes filósofos, Francis Bacon na Inglaterra e René Descartes na França, proclamaram o nascimento da ciência moderna. Descartes era um pássaro e Bacon era um sapo. Cada um deles descreveu sua visão do futuro. Suas visões eram muito diferentes. Bacon disse: “Tudo depende de manter o olhar firmemente fixo nos fatos da natureza”. Descartes disse: “Penso, logo existo”. Segundo Bacon, os cientistas deveriam viajar pela Terra coletando fatos, até que os fatos acumulados revelem como funciona a Natureza. Os cientistas induzirão então as leis da Natureza a partir dos fatos. Segundo Descartes, os cientistas deveriam ficar em casa e deduzir as leis da Natureza pelo pensamento puro. Para deduzir as leis corretamente, precisarão apenas das regras da lógica e do conhecimento da existência de Deus. Durante quatrocentos anos, desde que Bacon e Descartes abriram o caminho, a ciência avançou rapidamente, seguindo ambos os caminhos simultaneamente. Nem o empirismo baconiano nem o dogmatismo cartesiano têm o poder de elucidar os segredos da Natureza por si só, mas ambos juntos têm sido surpreendentemente bem sucedidos. Durante quatrocentos anos, os cientistas ingleses tenderam a ser baconianos e os cientistas franceses, cartesianos. Faraday, Darwin e Rutherford eram baconianos; Pascal, Laplace e Poincaré eram cartesianos. A ciência foi grandemente enriquecida pela fertilização cruzada das duas culturas contrastantes. Ambas as culturas sempre estiveram presentes em ambos os países. Newton era no fundo um cartesiano, usando o pensamento puro como Descartes pretendia, e usando-o para demolir o dogma cartesiano dos vórtices. Marie Curie era, no fundo, uma baconiana, fervendo toneladas de minério de urânio bruto para demolir o dogma da indestrutibilidade dos átomos.
Na história da matemática do século XX, ocorreram dois acontecimentos decisivos, um pertencente à tradição baconiana e outro à tradição cartesiana. O primeiro foi o Congresso Internacional de Matemáticos em Paris, em 1900, no qual Hilbert fez o discurso principal, traçando o curso da matemática para o próximo século, propondo a sua famosa lista de vinte e três problemas pendentes não resolvidos. O próprio Hilbert era um pássaro, voando alto sobre todo o território da matemática, mas falou de seus problemas para os sapos que os resolveriam um de cada vez. O segundo evento decisivo foi a formação do grupo Bourbaki de pássaros matemáticos na França na década de 1930, dedicado à publicação de uma série de livros didáticos que estabeleceriam uma estrutura unificadora para toda a matemática. Os problemas de Hilbert tiveram enorme sucesso em orientar a pesquisa matemática em direções frutíferas. Alguns deles foram resolvidos e alguns permanecem sem solução, mas quase todos estimularam o crescimento de novas ideias e novos campos da matemática. O projeto Bourbaki foi igualmente influente. Mudou o estilo da matemática durante os cinquenta anos seguintes, impondo uma coerência lógica que não existia antes e mudando a ênfase de exemplos concretos para generalidades abstratas. No esquema Bourbaki, a matemática é a estrutura abstrata incluída nos livros didáticos Bourbaki. O que não está nos livros didáticos não é matemática. Exemplos concretos, por não aparecerem nos livros didáticos, não são matemática. O programa Bourbaki foi a expressão extrema do estilo cartesiano. Estreitou o âmbito da matemática ao excluir as belas flores que os viajantes baconianos podiam colher à beira da estrada.
Alguns anos depois de meu aprendizado com Besicovitch, vim para Princeton e conheci Hermann Weyl. Weyl era um pássaro prototípico, assim como Besicovitch era um sapo prototípico. Tive a sorte de conviver com Weyl por um ano no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, antes de ele se aposentar do Instituto e voltar para Zurique. Ele gostou de mim porque durante aquele ano publiquei artigos no Annals of Mathematics sobre teoria dos números e na Physical Review sobre a teoria quântica da radiação. Ele era uma das poucas pessoas vivas que se sentia à vontade em ambas as disciplinas. Ele me acolheu no Instituto, na esperança de que eu fosse um pássaro como ele. Mas ficou desapontado. Permaneci obstinadamente um sapo. Embora eu vasculhasse vários buracos na lama, sempre olhava para eles um de cada vez e não procurava conexões. Para mim, a teoria dos números e a teoria quântica eram mundos separados com belezas distintas. Não olhava para eles como Weyl faria, na esperança de encontrar as pistas de um grande projeto.
A grande contribuição de Weyl para a teoria quântica da radiação foi a invenção dos campos de calibre. Essa ideia teve uma história curiosa. Weyl os inventou em 1918 como campos clássicos, em sua teoria unificada da relatividade geral e do eletromagnetismo. Ele os chamou de “campos de calibre” porque estava preocupado com a não integrabilidade das medições de comprimento. Sua teoria unificada foi prontamente e publicamente rejeitada por Einstein. Após esse raio vindo do alto, Weyl não abandonou sua teoria, mas passou para outras coisas. A teoria não tinha consequências experimentais que pudessem ser testadas. Então, em 1929, depois que a mecânica quântica foi inventada por outros, Weyl percebeu que seus campos de calibre se ajustavam muito melhor ao mundo quântico do que ao mundo clássico. Tudo o que ele precisava fazer, para transformar um medidor clássico em um medidor quântico, era transformar números reais em números complexos. Na mecânica quântica, cada quantum de carga elétrica carrega consigo uma função de onda complexa com uma fase, e o campo de calibre está relacionado com a não integrabilidade das medições de fase. O campo poderia ser então identificado com o potencial eletromagnético, e a lei da conservação da carga tornou-se uma consequência da invariância de fase local da teoria.
Weyl morreu quatro anos depois de retornar de Princeton para Zurique, e eu escrevi seu obituário para a revista Nature. “Entre todos os matemáticos que iniciaram a sua vida profissional no século XX”, escrevi, “Hermann Weyl foi aquele que fez contribuições importantes no maior número de campos diferentes. Só ele poderia ser comparado com os últimos grandes matemáticos universais do século XIX, Hilbert e Poincaré. Enquanto viveu, ele encarnou um contato vivo entre as principais linhas de avanço da matemática pura e da física teórica. Agora ele está morto, o contato foi quebrado e nossas esperanças de compreender o universo físico pelo uso direto da imaginação matemática criativa estão por enquanto encerradas.” Lamentei sua morte, mas não tinha vontade de perseguir seu sonho. Fiquei feliz em ver a matemática pura e a física marchando em direções opostas.
O obituário terminava com um esboço de Weyl como ser humano: “A característica de Weyl era um senso estético que dominava seu pensamento em todos os assuntos. Certa vez, ele me disse, meio brincando: ‘Meu trabalho sempre procurou unir o verdadeiro ao belo; mas quando tinha que escolher um ou outro, geralmente escolhia o belo’”. Esta observação resume perfeitamente sua personalidade. Mostra a sua profunda fé numa harmonia última da Natureza, na qual as leis deveriam inevitavelmente expressar-se numa forma matematicamente bela. Mostra também o seu reconhecimento da fragilidade humana e o seu humor, que sempre o impediu de ser pomposo. Seus amigos em Princeton se lembrarão dele como ele era quando o vi pela última vez, no Baile da Primavera do Instituto de Estudos Avançados, em abril passado: um homem grande e jovial, divertindo-se esplendidamente, seu jeito alegre e seus passos leves não dando nenhum indício de seus sessenta e nove anos.
Os cinquenta anos após a morte de Weyl foram uma era de ouro para a física experimental e a astronomia observacional, uma época de ouro para os viajantes baconianos que colhiam fatos, para os sapos que exploravam pequenas regiões do pântano em que vivem. Durante esses cinquenta anos, os saposacumularam um conhecimento detalhado de uma grande variedade de estruturas cósmicas e de uma grande variedade de partículas e interações. À medida que a exploração de novos territórios continuava, o universo tornou-se mais complicado. Em vez de um grande projeto que exibisse a simplicidade e a beleza da matemática de Weyl, os exploradores encontraram objetos estranhos, como quarks e explosões de raios gama, conceitos estranhos, como supersimetria e universos múltiplos. Entretanto, a matemática também se tornava mais complicada, à medida que continuava a exploração dos fenômenos do caos e de muitas outras novas áreas abertas pelos computadores. Os matemáticos descobriram o mistério central da computabilidade, a conjectura representada pela afirmação “P não é igual a NP”. Essa conjectura afirma que existem problemas matemáticos que podem ser resolvidos rapidamente em casos individuais, mas não podem ser resolvidos por um algoritmo rápido aplicável a todos os casos. O exemplo mais famoso de tal problema é o problema do caixeiro viajante, que consiste em encontrar o caminho mais curto para um caixeiro visitar um conjunto de cidades, sabendo a distância entre cada par. Todos os especialistas acreditam que a conjectura é verdadeira e que o problema do caixeiro viajante é um exemplo de problema que é P, mas não NP. Mas ninguém tem a menor ideia de como provar isso. Este é um mistério que nem sequer poderia ter sido formulado no universo matemático do século XIX de Hermann Weyl.
link nao funcional
https://pdodds.w3.uvm.edu/files/papers/others/2009/dyson2009a.pdf