Dei a entrevista abaixo para a livraria [Trabalhar Cansa], pode ser lida aqui.
Recentemente, apareceu também na Não É Imprensa, bem aqui.
Nela, eu falo sobre meu primeiro livro, O Grande Experimento, que trata da independência dos Estados Unidos.
1 - A primeira pergunta é aquela que todo mundo faz a um autor: de onde veio a curiosidade, o interesse, para com a história dos Estados Unidos e como surgiu a ideia do livro?
Marcel Novaes - Acho que o próprio ataque de 11 de setembro de 2001 já começou a despertar minha curiosidade sobre a história dos Estados Unidos. Naquela época, eu vi pessoas fazendo brindes que celebravam um evento no qual morreram milhares de pessoas, o que é algo muito impactante. Ao mesmo tempo, ouvi outras pessoas que louvavam aquele país como a pedra fundamental da democracia moderna. Então, parecia haver algo muito interessante por aí.
Mas foi só uns quinze anos mais tarde, a partir de leituras sobre temas como iluminismo, revolução francesa, revolução industrial, progressismo e conservadorismo etc., que realmente me interessei concretamente pela independência americana. Livros como Reflexões Sobre a Revolução na França, de Burke, Os Caminhos para a Modernidade, de Himmelfarb, e o próprio Democracia na América, de Tocqueville, são alguns exemplos de obras que me levaram por esse caminho.
Entretanto, quando procurei ler a respeito, tive muita dificuldade em encontrar livros que tivessem sido publicados em português. Enquanto me embrenhava na literatura em inglês, comecei a acalentar o projeto de escrever eu mesmo uma referência que fosse ao mesmo tempo interessante e acessível, para preencher essa lacuna e tentar propiciar a outros algum contato com essa história. Foi uma experiência desafiadora, já que minha formação profissional é em física teórica. Mas espero ter conseguido.
2 - Logo no começo do livro você faz um comentário sobre as semelhanças e diferenças entre os Estados Unidos e o Brasil. Como você enxerga estas diferenças e como elas moldaram os dois países? E o que os dois países poderiam aprender um com o outro?
Apesar das semelhanças em termos de população e tamanho, de terem sido descobertos pelos europeus mais ou menos na mesma época, as diferenças históricas entre o Tio Sam e o Gigante Adormecido são enormes. Apesar de Leandro Karnal desprezar essa ideia em sua obra sobre o assunto, essas diferenças podem ser traçadas até os diferentes processos de colonização que esses países experimentaram. Apesar de ambos terem feito uso extenso de mão de obra escrava, a exploração portuguesa do Brasil era centrípeta, com governo centralizado em poucas autoridades e baseada em extrativismo, enquanto o povoamento inicial dos EUA foi centrífugo, marcado por relativa igualdade de condições entre os cidadãos e várias iniciativas de autogoverno.
Ao longo desse processo, os EUA se formaram como uma democracia, conquistaram sua independência e instauraram um regime republicano com real participação popular, enquanto o Brasil permaneceu monárquico por muito mais tempo, experimentando uma independência feita “por cima” e depois, proclamando a República através de um golpe de marechais, do qual o povo mal teve notícia. A democracia, por aqui, tem raízes pouco profundas.
O Brasil tem muito a aprender com os EUA. Para ficarmos nos termos políticos, podemos observar que aquele país vem elegendo presidentes a cada quatro anos desde 1789, sem interrupções. Mesmo com quatro presidentes tendo sido assassinados no cargo e uma renúncia, nunca flertaram com soluções de força ou arranjos extra-constitucionais.
3 - Das figuras que você vai apresentando no livro, algumas são conhecidas do grande público, outras são mais distantes do nosso imaginário. Dentre estas figuras, quais as que surpreenderam você? E quais os motivos, claro.
Além de Thomas Jefferson e Benjamin Franklin, celebridades das quais muita gente já ouviu falar, há dois personagens em especial que eram desconhecidos para mim e que se mostraram fascinantes: John Adams e Alexander Hamilton.
Adams foi um dos principais líderes da independência, mais importante para esse processo do que o celebrado Jefferson. Um dos poucos personagens relevantes do período que não possuía escravos. Formado em direito, atuou como diplomata na Holanda, na França e na Grã-Bretanha. Foi o segundo presidente do país e elaborou a constituição do estado de Massachusetts. A HBO tem uma boa série sobre a vida dele, chamada John Adams, com Paul Giamatti no papel principal. Segundo ele, “a liberdade não pode ser preservada se o povo não for educado”.
Hamilton atuou como secretário do Tesouro na administração de George Washington e foi a figura fundamental no processo de criação da estrutura financeira do país. Foi também um dos principais negociadores envolvidos na criação da Constituição, tendo escrito a maioria dos artigos sobre o assunto conhecidos como O Federalista, cuja autoria dividiu principalmente com James Madison. Segundo ele, “será de pouca serventia para o povo que as leis sejam feitas por homens de sua escolha, se as leis foram em tal volume que não possam ser lidas, ou tão incoerentes que não possam ser entendidas”.
4 - Uma comparação pertinente que você trabalha no livro é aquela que aponta para a Revolução Americana e a sua irmã europeia, a Revolução Francesa. Você poderia ressaltar quais as principais diferenças entre as duas, e, complementando, você acha que a circunstância geográfica foi mais importante para que a Revolução Americana não tenha descambado para algo mais brutal, ‘revolucionário’ mesmo? Ou você acha que o caráter daqueles homens evitaria a decapitação do rei inglês, por exemplo?
A independência das colônias americanas nasceu como resposta a uma iniciativa de aumento de impostos por parte da metrópole. O argumento era que não seria justo cobrar impostos dos colonos se eles não tivessem representação no parlamento. Ou seja, foi um movimento de salvaguarda de direitos e não uma revolução que buscasse alterar profundamente a sociedade. Esse foi justamente o caso da revolução francesa, que aboliu a monarquia, executou o rei e deu origem a uma sangrenta guerra civil que, mais tarde, desaguaria em Napoleão. Os objetivos dos líderes americanos eram modestos, circunscritos; os objetivos dos líderes franceses eram radicais e amplos (deixavam a meta aberta e dobravam a meta). Somente um fetiche pelo conceito de “revolução” pode explicar que a independência americana, que foi bem sucedida em estabelecer a primeira república moderna, seja muito menos conhecida e comemorada que a revolução francesa.
A distância geográfica entre os EUA e a Inglaterra foi certamente um fator que impediu a eclosão de uma guerra civil (ainda assim, a guerra pela independência entre esses dois países causou dezenas de milhares de mortes). Se os revolucionários americanos teriam decapitado seu rei é matéria de especulação mas, pessoalmente, acredito que não. Muitos deles se tornaram “revolucionários” a contragosto, como reação face a injustiças que acreditavam estar sofrendo por parte da metrópole. O rompimento de sua lealdade com a coroa aconteceu paulatinamente, ao longo de várias dificuldades econômicas, políticas e mesmo psicológicas.
5 - A Constituição Americana é um documento dos mais importantes e coesos já elaborados por uma sociedade. Quais as principais qualidades deste documento e como você enxerga suas falhas, se é que há falhas?
A Constituição original, criada em 1787, contém apenas sete artigos e pode ser lida em dez minutos. Estabelece procedimentos eleitorais, as atribuições dos poderes legislativo, executivo e judiciário e a relação entre o governo federal e os governos estaduais, entre algumas outras disposições. Em particular, proibiu que o tráfico de escravos fosse declarado ilegal antes de 1808.
Durante o processo de ratificação do texto constitucional pelos estados, foram propostas emendas e dez delas foram acrescentadas até 1791. As mais célebres são a primeira (direito às liberdades de expressão, culto e imprensa), a segunda (direito de portar armas), a quarta (exigência de mandado para dar busca em propriedade privada), a quinta (exigência do devido processo legal, proibição de auto-incriminação), a sexta (tribunal do júri), a oitava (proibição de punições cruéis) e a décima (o governo federal possui somente os poderes delegados a ele pelo povo ou pelos estados). Desde então foram feitas outras 17 emendas, entre elas a que aboliu a escravidão e a que instituiu o voto feminino.
A Constituição é venerada quase como um texto sagrado nos EUA. Sua concisão permitiu que permanecesse válida até hoje. Em contraste, o Brasil já teve nove constituições, a última delas em 1988. A principal diferença entre os dois textos é o nível de detalhe a que desce a brasileira, que possui 250 artigos e 95 emendas e garante, como direitos de todos os cidadãos, “a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social”, entre outros. O segundo parágrafo do artigo 242, por exemplo, estabelece que “o colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal”.
Outra qualidade da Constituição americana, além da objetividade, é sua abertura: “Nós, o povo...”. O texto deixa claro que o poder emana do povo, mas que tal poder deve ser exercido dentro de uma moldura institucional, o famoso sistema de freios e contrapesos projetado para impedir sua excessiva concentração e a possibilidade da tirania. Não estou apto a discutir possíveis falhas na Constituição.
6 - Sei que seu próximo livro será sobre a Guerra da Secessão/Guerra Civil, que é o conflito mais sangrento da história militar dos Estados Unidos, inclusive em uma entrevista recente, James McPherson, autor do Battle Cry of Freedom, disse que as estimativas de mortos e feridos é maior do que pensavam, passando de 850 mil vítimas. E a pergunta, que pode servir como um aperitivo para seu novo livro, é: como os ‘founding fathers’ não puderam enxergar o trágico caminho que se apresentava para eles já naqueles anos?
Os “founding fathers” tiveram que lidar com vários problemas ao mesmo tempo. Declarar a independência, vencer uma guerra contra a maior potência da época, criar constituições para todos os estados, criar a Constituição federal, organizar os territórios, criar um sistema bancário, elaborar uma política externa, impedir que aquela reunião de estados se fragmentasse. Para que tudo isso fosse possível, foi absolutamente indispensável negociar divergências entre todos os participantes.
Desde o começo, estava claro para todos que a escravidão seria um problema sério. Thomas Jefferson escreveu, no trecho mais famoso da Declaração de Independência, que “todos os homens são criados iguais, dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, dentre os quais à vida, à liberdade e à busca da felicidade.” A hipocrisia dessa afirmação foi apontada imediatamente.
Se todos são iguais e têm direito à liberdade, o que dizer dos escravos?
A presença do trabalho escravo seguia uma divisão geográfica simples: ele era predominante no sul e pouco disseminado no norte. Como a colaboração dos estados sulistas era necessária para que pudessem lidar com todos os problemas que o nascente país enfrentava, um tratamento direto da questão demorou para acontecer. Esse tema foi várias vezes levantado nas discussões que levaram à Constituição e nas primeiras sessões do Congresso federal, mas terminou sempre em um beco sem saída.
Resumindo: eles enxergaram o problema desde o começo, mas acharam melhor se concentrar em coisas que consideraram mais urgentes e deixar a resolução dessa espinhosa questão para as gerações futuras.