Em 1687, Isaac Newton publicou Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica, obra na qual estabeleceu sua teoria sobre as leis que regem o movimento dos corpos, incluindo a lei da gravitação universal. O impacto de suas ideias foi imenso. A lei da gravitação explicava não só o fenômeno cotidiano da queda dos corpos, mas as marés e as próprias órbitas celestes. Newton apresentava um universo inteiramente determinístico e revelava, por detrás das eventuais aparências caóticas, um conjunto pequeno de regras de funcionamento que eram de fácil compreensão.
A doutrina do determinismo encontrou sua expressão mais eloquente nas palavras do Marquês de Laplace que, em 1814, escreveu:
Podemos considerar o presente estado do universo como resultado de seu passado e a causa do seu futuro. Se um intelecto em certo momento tiver conhecimento de todas as forças que colocam a natureza em movimento e da posição de todos os itens dos quais a natureza é composta, e se esse intelecto for poderoso o bastante para submeter tais dados à análise, ele conterá numa única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e também os do átomo mais diminuto; para tal intelecto, nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, estaria ao alcance de seus olhos
A imagem que ficou associada a essa visão do mundo é a do relógio: uma machina mundi de funcionamento simples, repetitivo, previsível, controlável. Em uma carta a Gottfried Leibniz, o filósofo britânico Samuel Clarke afirmou que “A ideia do mundo como uma grande máquina, que se move sem a interferência de Deus, como um relógio que continua funcionando sem a assistência do relojoeiro, é a ideia do materialismo e do destino”.
À parte as reverberações teológicas, a abordagem newtoniana influenciou profundamente os pensadores do século XVIII, em particular Voltaire, que era um admirador entusiasmado. Não demorou para que aquele paradigma de explicação fosse voltado para o estudo da sociedade. Era preciso descobrir as leis simples e determinísticas que regulam o comportamento dos homens, revelar a ordem que decerto existia por trás do caos do livre-arbítrio da multidão (caminhando logo atrás dos cientistas sociais, vinham os engenheiros sociais, trazendo na pasta as noções subsidiárias de controle, projeto, aperfeiçoamento).
Entretanto, a física não parou com Newton e com a mecânica. Ao longo do século XIX, na esteira da revolução industrial, era a termodinâmica que se desenvolvia, principalmente a partir do estudo e da utilização de máquinas a vapor. O estudo dos fenômenos térmicos acabou por produzir uma nova visão a respeito da mecânica e do próprio determinismo, principalmente depois dos trabalhos do austríaco Ludwig Boltzmann, do escocês James Maxwell e do americano Josiah Gibbs, que formularam a chamada “mecânica estatística”. Saía de cena o enferrujado relógio newtoniano, dando lugar ao amontoado caótico de átomos invisíveis, em perpétua agitação e ininterruptas colisões, que chamamos “gás”. Em vez de causalidade e regularidade, encontramos imprevisibilidade e probabilidades.
O relógio é monótono. Um mundo povoado por relógios é um mundo rígido, previsível, congelado eternamente em tique-taques metálicos, ao passo que os fenômenos termodinâmicos são irreversíveis: o cubo de gelo que derrete num copo de suco de laranja está perdido para sempre, o perfume que se espalha pela sala ocupa todo o espaço disponível e jamais retornará ao delicado frasco.
A mecânica estatística ensina que é fútil tentar descrever um sistema complexo usando as leis de Newton. Não só porque o intelecto imaginado por Laplace não existe e nunca existirá, mas porque essa realmente não é a melhor abordagem. A insistência no determinismo estaria aí mal colocada. As propriedades que realmente importam nos sistemas termodinâmicos – pressão, temperatura, energia – são mais apropriadamente descritas quando formuladas de modo probabilístico-estatístico.
Assim, a visão de sociedade que se afina com a versão estatística da mecânica não vê um conjunto pequeno de leis simples e inteligíveis, mas uma “sociedade dos indivíduos”, cada um deles seguindo seu próprio caminho, com um número infinito de pequenas colisões ocorrendo a cada momento como fugazes beijos, uma gigantesca sopa caótica de impulsos que nunca poderá ser projetada e controlada.
Uma moça empurra uma caixa de papelão por um corredor. Por que ela faz isso? Não sabemos. O que há na caixa? Talvez livros, talvez roupas. Não importa. Ela empurra a caixa com força, imprimindo-lhe uma velocidade. A caixa arrasta pelo chão e acaba parando. Novo empurrão, novo deslizamento, nova parada. A cada vez, a energia cinética fornecida por suas mãos desaparece, convertida em calor pelo atrito. A energia cinética inicial é organizada: todas as partes da caixa se movem na mesma direção. A produção de calor é uma produção de desordem: o aumento de temperatura reflete a agitação térmica dos átomos, que passam a se mover aleatoriamente; o movimento organizado se converte em movimento desorganizado.
Compare a descrição acima com este trecho de Tocquevile sobre a sociedade democrática:
Não se luta vantajosamente contra o espírito de seu tempo e de seu país; e um homem, por mais poderoso que o suponhamos, dificilmente faz seus contemporâneos compartilharem dos sentimentos e das ideias que o conjunto dos desejos e sentimentos destes repele. (...) Não que resistam a ele de maneira aberta (...) mas não o seguem. Ao ardor dele opõem em segredo sua inércia; aos instintos revolucionários dele, seus interesses conservadores (...) Ele os levanta um momento com mil esforços, mas logo eles lhe escapam e, como que arrastados por seu próprio peso, tornam a cair
A pessoa que empurra a caixa quer que todos os átomos desta se movam na mesma direção. Eles se recusam. Tendem naturalmente à aleatoriedade. A seu ardor, opõem inércia. Ela os empurra com mil esforços, eles tornam a se dispersar.
Se encerrássemos agora, faltaria mencionar a derradeira mudança havida na abordagem da física em relação ao movimento. Afinal, quem neste mundo nunca ouviu falar da teoria quântica? O que há de novo aqui é que as partículas de matéria são indecisas, hesitantes, reservadas. Tomamos dois elétrons iguais em situações iguais e, ainda assim, eles se comportam de maneiras diferentes. Um deles se decide por isto, outro por aquilo. O que faz uma escolha hoje, fará outra amanhã. Cada um deles, não só a multidão caótica, é inconstante e imprevisível.
Em nossa analogia, talvez isso corresponda a considerar uma dimensão psicológica. Os seres humanos, assim como os elétrons, trazem dentro de si tendências conflitantes e profundas incoerências. A visão de sociedade que se afina com a mecânica quântica vê pessoas que não têm suas trajetórias determinadas de antemão, que não respondem a estímulos de forma automática, mas que, ao contrário, estão a todo momento se debatendo com decisões que só chegam a tomar no último instante, que talvez se surpreendam consigo mesmas. Como disse o poeta Antonio Machado, "Caminante, no hay camino / se hace camino al andar".