O crítico literário Décio Machado (pseudônimo; brincadeira com o fato de que ele supostamente “desce o machado” nas obras das quais não gosta) publicou aqui uma resenha sobre meu romance Os Automóveis Ardem em Chamas.
Ele não deu nenhuma machadada no livro, o que significa que gostou muito.
Segue abaixo.
O livro conta duas histórias, em capítulos alternados.
Em 2019, Paulo está tentando descobrir o que aconteceu com seu pai, que nunca conheceu. No primeiro capítulo, ele descobre que o pai morreu na prisão. A partir daí, tenta recuperar essa história, conversando com pessoas que o conheceram e indo atrás de militares responsáveis pela prisão. Um desses militares aparece morto, e essa morte está sendo investigada pelo policial Alex, sem dúvida nenhuma o melhor personagem do livro. Paulo e Alex juntam forças para revirar o passado, tentando esclarecer agora dois assassinatos.
A outra história se passa cinquenta anos antes, entre 1968 e 1970, e conta justamente o que aconteceu com o pai de Paulo, Mauro. Calouro na universidade, ingênuo de tudo, Mauro se apaixona por Carla e se envolve com o movimento estudantil, ficando cada mais mais radical até que sua turma organiza um assalto a banco que dá errado e ele vai preso. Entrementes, vemos um famoso show de Caetano (de onde vem o título do livro), a copa de 70, entre outras referências aos eventos da época.
É notável que o autor consiga montar essa narrativa ambientada no tempo da ditadura sem cair nos típicos maneirismos esquerdistas. A ditadura é condenada duramente, sem ressalvas, é claro (“A ideia de continuar vivendo em uma ditadura indefinidamente, de se formar e se casar em uma ditadura, de ter filhos e envelhecer em uma ditadura encheu seus olhos de lágrimas”). Mas os militares, os policiais, os que apoiavam a ditadura não são gorilas, não são vilões de histórias em quadrinhos. São pessoas. Conforme o próprio Alex observa:
Sabe quantos morrem assassinados no Brasil todo ano, hoje em dia? Se a vida valia pouco naquela época, atualmente vale menos ainda. Desculpe, Paulo, mas essa preocupação toda com a ditadura é coisa de classe média. É assunto de quem tem tempo pra isso. (...) E digo mais, vocês só se incomodam tanto com a ditadura porque, naquele tempo, branco rico universitário não estava a salvo. Foi a única época em que gente como você apanhou da polícia, foi esculachado, preso sem motivo, desapareceu. É por isso que se fala no assunto até hoje. Se todas as vítimas tivessem sido pretas e pobres, era vida que segue, normal.
Por outro lado, também os estudantes e os militantes não são tratados como santos. Vemos seus defeitos, sua ignorância, sua ingenuidade, seu ressentimento. Não deve ser à toa que a epígrafe do livro diz que é triste perceber que se deu a vida pela ideia errada. Como resume uma das militantes, anos depois:
É que na época não pensávamos nas consequências, só tínhamos uma coisa em mente, era preciso derrubar a ditadura a qualquer custo. Acontece que nenhum jovem consegue captar a dimensão dessa expressão, a qualquer custo, o que isso realmente significa. Dizemos por dizer, não fazemos ideia de que os custos podem ser imensos, insuportáveis. Acreditamos no nosso próprio heroísmo tolo.
Mas a obra não é sobre ideias, e sim sobre pessoas. Ficamos conhecendo Paulo, seus pais e os pais de seus pais. Conhecemos Alex, sua ex-esposa e sua filha. Conhecemos a turma de estudantes que pretendem virar assaltantes. Acompanhamos seus dramas, que são dramas humanos. Esses dramas estão emaranhados com a cultura e a política de cada época, sim, mas isso é mostrado sem didatismo.
O livro é muito bem escrito. A narrativa é ágil, faz a gente querer virar as páginas. Tem um ritmo de livro policial, mas uma certa profundidade em sua reflexão sobre o Brasil. Alex e sua filha entram em conflito no tema do racismo (ele é descrito como mulato; ela, como negra). A mãe de Paulo entra em conflito com seus pais por causa do ativismo. Alex e Paulo entram em conflito a respeito do legado da ditadura. O grupo de jovens tem seus conflitos internos. O passado não é simples, o presente não é simples, nada é simples, ninguém é simples.
Os diálogos são bem feitos.
— Eu não gostaria de machucar ninguém — disse Eulália. — Mas toparia assaltar um banco.
— Não é assalto, é expropriação. O dinheiro dos bancos é roubado do povo, estamos só tomando de volta.
— Que seja, expropriação. Eu toparia expropriar um banco.
— Só quero deixar registrado que não se pode renunciar à violência. É como disse o Marighella, o nosso caminho é o da violência, do radicalismo e do terrorismo, pois são as únicas armas que podem ser usadas contra a inominável ditadura. Temos que criar um, dois, três, muitos Vietnãs.
— Falar isso é fácil, difícil é atirar na cara de uma pessoa de verdade — disse Juvenal.
— Se te falta coragem, deixa com a gente — disse Epitácio.
— Só estou dizendo que não tenho certeza…
— A causa pede sacrifícios. Inclusive o sacrifício das dúvidas. A ação tem seu próprio tempo, não pode esperar a certeza.
O livro tem até alguns momentos engraçados. E a reconstituição da época foi cuidadosa, como no caso dos jogos do Brasil e as passagens dentro da prisão, apesar de alguns momentos inverossímeis que não chegam a atrapalhar.
Há uma onda literária atualmente de obras que abordam o fenômeno do bolsonarismo, com alusões à ditadura. Provavelmente ainda vai durar um pouco. É um tema interessante. E dos livros que eu li até agora que tangenciam esse assunto, este é o melhor.
Nenhuma machadada.
(lembrando que livro sem machadada é ótimo, uma machadada é bom, duas é fraco e três é muito ruim)