Hoje é dia 4 de julho, aniversário da independência americana.
Com esse gancho, reproduzo abaixo trechos do capítulo inicial do meu livro sobre o assunto, O Grande Experimento.
Thomas Jefferson acordou quando o dia ainda estava raiando. Antes de se vestir, mergulhou os pés em uma bacia de água fria, prática que considerava medicinal. Mais tarde, enquanto comia pão com geleia, tinha nas mãos um jornal, comprado ali mesmo na Filadélfia, no qual vinha reproduzido o texto da Declaração de Direitos da Virgínia.
Jefferson estava bastante impressionado.
Aquela declaração havia sido adotada poucos dias antes pela colônia da Virgínia, sua terra natal, em 12 de junho de 1776, e consistia em uma lista de dezesseis artigos. O primeiro deles começava dizendo que “todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes” e que todos têm direito “à vida, à liberdade, aos meios de adquirir e possuir propriedade e a buscar e a obter felicidade e segurança”. O segundo artigo dizia que “todo poder está investido no povo e, consequentemente, deriva do povo”.
Quando se sentou para trabalhar, Jefferson estava decidido a incorporar aquelas ideias radicais ao texto que ele próprio começava a escrever.
No dia anterior, o presidente do Segundo Congresso Continental, John Hancock, nomeara um comitê com cinco membros para elaborar uma Declaração de Independência para as colônias britânicas na América. O comitê contava com duas estrelas da política americana: os congressistas John Adams, representante de Massachusetts, líder do movimento pela independência e futuro presidente dos Estados Unidos, e o lendário Benjamin Franklin, representante da Pensilvânia.
Adams estava bastante ocupado, e Franklin já tinha a saúde debilitada. Assim, desde o primeiro dia a responsabilidade pela escrita do texto recaíra sobre Jefferson. De fato, ele fora indicado para o comitê justamente por sua fama de escritor brilhante. Outra qualidade sua, a rapidez na escrita, seria necessária, já que o prazo limite para que o documento estivesse pronto era o primeiro dia de julho, ou seja, dali a pouco mais de dez dias.
Não havia realmente tempo a perder. A guerra com a Grã-Bretanha já começara havia mais de um ano, e os mortos se contavam aos milhares. Um Exército Continental fora organizado e era liderado por George Washington, mas contava com soldados sem treinamento militar e parcos recursos. As forças britânicas na América ainda eram poucas, e haviam sido rechaçadas em Boston, mas era questão de tempo até chegarem poderosos reforços (de fato, Nova York seria tomada dali a dois meses).
O Congresso precisava declarar a independência o quanto antes. Isso certamente levantaria o moral dos soldados. Serviria também para facilitar a criação de impostos nacionais para financiar o exército e possibilitaria alianças estratégicas com outros países, em particular a eterna rival dos britânicos: a França. Em janeiro, Thomas Paine já escrevera em seu popular livreto, o Senso Comum, que “nada pode resolver nossos assuntos com tanta prontidão quanto uma declaração franca e categórica de independência”. Segundo ele, “o costume de todas as Cortes está contra nós, e assim será, até que, pela Independência, tomemos posição com as outras Nações”.
No papel em branco à sua frente, Jefferson escreveu a primeira frase: “Consideramos estas verdades como sagradas e inegáveis”. Em seguida, inspirado pelo texto que acabara de ler no jornal, continuou:
que todos os homens são criados iguais e independentes, e que dessa criação eles derivam direitos inerentes e inalienáveis, dentre os quais à vida, à liberdade e à busca da felicidade
Em contraste com a declaração de Virgínia, ele deixou de fora o direito à propriedade, a fim de incluir os americanos sem propriedades entre aqueles que declaravam sua independência.
O texto continuava, afirmando que era para assegurar esses direitos que governos eram instituídos entre os homens, e que tais governos derivavam seus poderes do consentimento dos governados. Assim, o povo sempre poderia alterar ou abolir o governo, se porventura visse seus direitos ameaçados. Para não deixar dúvida, Jefferson escreveu que, se um governo se tornasse despótico, o povo tinha “o direito, o dever, de se livrar de um tal governo”.
Apesar de ecoarem ideias de John Locke publicadas quase um século antes, aquelas ainda eram teses radicais. Afinal, os reis e imperadores que governavam os países da Europa derivavam seu poder da inspiração divina, do direito de sangue obtido automaticamente no nascimento, não do consentimento de seus súditos.
O Congresso, se aceitasse aquele texto, não estaria apenas decretando a separação entre as colônias e a Grã-Bretanha; estaria fundando uma república. A primeira grande república moderna.
Ao fim daquele dia, a primeira parte do documento, o Preâmbulo, já estava terminada. Na segunda parte, a mais longa, o rei da Grã-Bretanha era acusado de tentar estabelecer uma “absoluta tirania” sobre as colônias. Para substanciar essa acusação, era oferecida uma lista de 21 acusações específicas. Por exemplo, a proibição de comércio com o resto do mundo e a “imposição de taxas sem consentimento”.
A questão dos impostos não poderia faltar, já que estivera na origem do movimento pela independência. A Lei do Açúcar, de 1764, e a Lei do Selo, de 1765, foram as primeiras tentativas da Grã-Bretanha de levantar fundos a partir de impostos cobrados dos americanos. A iniciativa gerara enorme descontentamento e levantara pela primeira vez a questão do limite do poder do parlamento britânico. De acordo com muitos advogados americanos, este não possuía autoridade para estabelecer impostos na América, uma vez que as colônias não possuíam representação no parlamento (“não pode haver taxação sem representação” tornou-se o seu lema). A resistência oferecida à Lei do Selo começara a plantar nas mentes americanas as sementes das ideias revolucionárias.
Em que pese seu discurso, Thomas Jefferson não era exatamente um abolicionista. Ele aparentemente compartilhava da visão predominante da época, segundo a qual os negros eram um povo inferior aos brancos, e suas propriedades no sul do país contavam com cerca de 200 escravos. Apesar de ao longo da vida ter defendido várias vezes o fim da escravidão, não tomou nenhuma atitude concreta nesse sentido durante seus mandatos como presidente. Jefferson parece ter acreditado que a escravidão era um mal necessário para os Estados Unidos, que deveria ser erradicado de forma lenta, gradual e segura. A partir de 1788, depois da morte de sua esposa, ele tomou a escrava Sarah (Sally) Hemings como amante e teve vários filhos com ela. Eles foram os únicos escravos que Jefferson libertou.
Em menos de uma semana, a primeira versão da declaração já estava pronta. O texto terminava afirmando que
Estas colônias são, e por direito devem ser, Estados livres e independentes; elas ficam absolvidas de toda aliança com a coroa britânica, e toda conexão política entre elas e a Grã-Bretanha ficam totalmente dissolvidas; como Estados livres e independentes, elas têm total poder para conduzir guerra, declarar paz, contrair alianças, estabelecer comércio, e fazer tudo que Estados independentes têm o direito de fazer
A primeira coisa que Jefferson fez depois de terminar o trabalho foi mostrar seu rascunho aos dois notáveis do comitê, Adams e Franklin, que fizeram algumas mudanças menores. A primeira frase foi trocada, de “Consideramos estas verdades como sagradas e inegáveis” para “Consideramos que estas verdades são auto-evidentes”. A frase seguinte também foi mudada para “foram dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis”.
Os outros dois membros do comitê, Sherman e Livingston, também foram consultados e possivelmente devem ter sugerido uma ou outra modificação sem consequência. Ao fim desse processo, o documento final, essencialmente um trabalho exclusivo de Jefferson, foi entregue ao Congresso no dia 28 de junho. Uma pintura a óleo, de autoria de John Trumbull, mostra o momento da entrega da declaração e está em exibição no Capitólio americano desde 1826.
Quando Thomas Jefferson terminou de escrever o rascunho da Declaração de Independência, seu plano era voltar o quanto antes ao seu estado natal. Ele provavelmente nem sequer sonhava que ainda serviria ao governo dos Estados Unidos como diplomata e como secretário de Estado do primeiro presidente eleito, e nem que ainda iria concorrer à presidência do país por três vezes, perdendo uma e ganhando duas.
No primeiro dia de julho, o congresso iniciou suas atividades por volta das dez horas da manhã. Depois de lidar com as habituais questões de ordem inicias relativas à guerra (recrutamento de homens para o exército, obtenção de chumbo para fabricação de balas, construção de fortificações, etc.), o presidente Hancock abriu as atividades relativas à Declaração de Independência em torno das onze horas. O primeiro congressista a falar foi o veterano John Dickinson, da Pensilvânia.
Dickinson era o autor das famosas Cartas de um Fazendeiro da Pensilvânia, nas quais defendera que as taxas impostas pela coroa sobre as colônias eram inconstitucionais. No ano anterior, 1775, escrevera para o Congresso a versão final da Declaração das Causas e da Necessidade de Pegar em Armas. Sua atividade política fora marcada pela vontade de chegar a um acordo com a Grã-Bretanha e tentar evitar tanto a independência quanto qualquer conflito armado. Naquele dia, ele faria sua última tentativa.
Depois de concordar que a América havia sido prejudicada, e que os americanos tinham de fato direito de resistir aos atos da coroa britânica, ele insistiu que a independência não serviria aos interesses de longo prazo do continente. Em vez disso, argumentou que era necessário buscar uma reconciliação. Afinal, uma guerra por independência contra a poderosa Grã-Bretanha, o mais vasto império que o mundo já viu, seria provavelmente longa, custaria muitas vidas e muito dinheiro, e ao final talvez fosse perdida. O povo americano, enfraquecido pela guerra, poderia cair presa fácil das potências europeias.
Dickinson era um orador experiente, mas já havia entendido que não tinha mais chance e via aquele discurso como sua despedida da política (na verdade, ele ainda viria a ser governador de dois estados: Pensilvânia e Delaware). Os congressistas o ouviram por cerca de duas horas. Quando ele acabou, John Adams se levantou para oferecer sua resposta. Como líder daqueles que buscavam a independência, era sua responsabilidade fazer o último discurso antes da apreciação do texto da declaração. Adams não tinha a oratória excelente de Dickinson, mas tinha sua cota de experiência como congressista e como o advogado mais famoso de Boston.
Durante seu discurso, no meio da tarde, o céu da Filadélfia ficou escuro com nuvens carregadas. Uma tempestade forte castigou a cidade, com raios e trovões que ribombavam como os temidos canhões ingleses. Velas tiveram de ser acesas para que a sessão do Congresso continuasse. Enquanto a chuva batia nas janelas, a voz de Adams hipnotizava a audiência. Jefferson disse mais tarde que Adams era o “pilar” que suportava a independência, “seu mais hábil advogado e defensor”.
O discurso acabou por volta das quatro horas da tarde, horário em que normalmente o Congresso encerraria suas atividades. Naquele dia, no entanto, todos os congressistas queriam dizer algo a respeito da independência, contando com a inspiração para deixar registrada alguma frase memorável. Um após o outro, os discursos entraram pela noite adentro.
No dia seguinte, 2 de julho, o Congresso votou oficialmente a questão. A moção pela independência foi aprovada sem oposição. John Adams escreveu que o dia 2 de julho seria para sempre lembrado como “uma época memorável na história da América,” um dia que seria “comemorado com pompa e solenidade, com shows, jogos, esportes, tiros, sinos, fogueiras e fogos de uma ponta à outra do continente”.
Adams acertou em tudo, menos na data. Ou melhor, no documento. Ele a princípio achou que a moção pela independência, que realmente era o fato político relevante, é que restaria lembrada. Em vez disso, depois de a moção ter sido aprovada, o Congresso ainda levou mais dois dias debatendo os detalhes do texto da correspondente declaração, que acabou por levar toda a fama.
O Preâmbulo é a parte mais famosa e mais influente da Declaração da Independência. Ele contém três ideias centrais. A primeira é que todos os homens são iguais no nascimento e possuem direitos inalienáveis (entre eles a famosa trinca “vida”, “liberdade” e “busca da felicidade”). A segunda é que todo poder político emana do povo. A terceira, derivada da segunda, é que o povo tem direito de derrubar o governo se este se tornar “destrutivo” (essa ideia se concretizou da forma mais sangrenta treze anos depois, na Revolução Francesa). Por incrível que pareça aos nossos olhos de hoje, o congresso não deu atenção e não fez nenhuma alteração ao Preâmbulo. Naquele momento, as acusações ao rei eram mais importantes; o Preâmbulo era considerado mera retórica.
Por exemplo, Jefferson acusara o rei de usar de políticas com “crueldade e perfídia inapropriadas ao chefe de uma nação civilizada”. O Congresso achou melhor aumentar a pungência da frase, aumentando-a para “crueldade e perfídia sem paralelo nas eras mais bárbaras e totalmente inapropriadas ao chefe de uma nação civilizada”.
O artigo em que o rei era denunciado pela escravidão acabou sendo retirado por completo, por pressão de congressistas dos estados do sul, que eram fortemente dependentes do trabalho escravo. A remoção desse artigo não contou com muita oposição dos estados do norte que, apesar de não empregarem muita mão de obra escrava, participavam ativamente do comércio de escravos. O antagonismo entre o norte e o sul do país, especialmente na questão do abolicionismo, acabaria levando, quase cem anos depois, a uma guerra civil vencida pelo norte, governado pelo presidente Abraham Lincoln.
Finalmente, em 4 de julho de 1776, o texto final da Declaração da Independência foi lido e aprovado pelo Congresso. Contra a vontade de Adams, que defendia o estabelecimento do dia 2 como data comemorativa, foi o 4 de julho, quando os Estados Unidos já eram independentes havia dois dias, que ficou para a história.